segunda-feira, 31 de maio de 2010

Silêncio

O silêncio da noite ergueu-se, agora,
Como fantasma que surgiu da bruma:
Silêncio enorme que se esfuma…
A vida é outra, agora:
A noite a idealiza…
A noite elege a calma Poesia,
Como um gesto de Deus, acaricia…
Tudo se abranda e purifica…
Minha alma é toda branca:
Sobre o negro da noite, ela aparece
Como gema de luz,
Que, em estojo de sonho, resplandece…

O meu moinho

Oh meu velho moinho! Que saudade!
Há quanto tempo já não vinha ver-te!
Minha doce lembrança! Vou dizer-te
O grato sentimento que me invade!

Encontro, agora, em ti a minha infância,
Meu eterno passeio de menina,
Num murmúrio de fonte cristalina
Se avisa em tintas leves e distância!

O meu banco de pedra! O rosmaninho,
Que há tanto aqui deixei e se conserva,
Como em cofre de sonho se reserva,
Florindo no passado, o meu caminho!

A tarde vai caindo, mansamente,
Mas eu nem dou por ela, enternecida,
Como quem vê num sonho a própria vida
A projectar-se ao longe, docemente!

Fico esquecida, assim, a recordar,
Matando esta saudade que trazia!
Como tudo é igual na fantasia
E na tranquila paz deste lugar!

Daqui avisto a minha terra, agora,
Como piedoso altar que se levanta,
Erguendo ao Céu essa Rainha Santa,
Que em milagres floriu, consoladora!

Que importa o tempo?... Eu vivo a fantasia!
Que importa a morte?... A vida é que domina!
Se até, na gota de água cristalina,
O mundo se renova, em cada dia…

Ai quem me dera aqui poder ficar,
Neste velho moinho, recordando!
Sem dar que pelo tempo ia passando,
Sem o tempo consigo me levar…

Estremoz – Janeiro de 1945

Melancolia

Porque trouxeste as horas já vividas
Para, neste momento, recordar?
Porque notaste as lágrimas caídas,
Que jamais tornaremos a chorar?

A vida não tem páginas relidas,
Tudo nela é constante renovar,
E nós somos as folhas ressequidas
Dum poema que o Outono vai rasgar…

Folhas mortas, que ficam sossegadas,
Deixai-as para sempre nas estradas…
Para que levantá-las, ventania?

Antes morrer na paz do esquecimento,
Do que ser arrastada pelo vento,
Em hora de cruel melancolia...

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Cantos da minha terra

Cantos da minha terra! que saudade,
Que profunda tristeza, que amargura!
Ecoam, longe em longe, na planura,
Repercutindo a pena que me invade…

Lamentações cortantes de ansiedade,
Tristes canções chorando, com ternura,
Um não sei quê de pena que tortura,
Encantação que traz fatalidade!

A mim, porque nasci alentejana,
(Sangue de moira em raça lusitana…)
Tudo me prende aqui, tudo me atrai!

Envolve-me esta sombra de agonia:
A tristeza que paira, ao fim do dia,
Num canto que se alonga e é sempre um ai!

terça-feira, 25 de maio de 2010

A minha boa estrela

Aquela estrela, pura e luminosa,
Todas as tardes brilha na janela,
Que parece moldura para Ela
No cenário de vidro cor de rosa.

E como é doce a amiga silenciosa:
Poego de oiro luzindo numa tela,
Derradeira ilusão duma aguarela,
Nesta hora de sonho dolorosa!

Eu nem acendo a luz! Fico-me a vê-la,
Nessa penumbra calma que me invade!
Pobre louca…talvez queira detê-la!

E quando Ela se parte… em ansiedade,
Eu cuido ver a minha boa estrela,
Perdida no silêncio da saudade…

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Hora de sesta

Hora de sesta… À sombra do montado,
A «malta» adormeceu! Abrasadora,
É a «calma», pelas terras de lavoura;
Secou a ervagem pelo descampado.

E o sobreiral, num prato ensanguentado,
Ergue os braços ao céu! – Nossa Senhora,
Envolve-o nessa mágoa redentora
Do teu olhar de luz abençoado!

O canto das cigarras entontece;
A aragem queima a alma; o sol abrasa;
Nem uma fonte anima esta paisagem!

Hora de sesta! Sombra que entristece,
Lenta, os nossos sentidos… Vida rasa,
Que se consome em chama de miragem…

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Pucarinhos de barro

Pucarinhos de barro, quem me dera
Sentir, na minha boca, essa frescura
Da vossa água perfumada e pura,
Que me traz o sabor da primavera!

Quanta boca ansiosa vos procura,
Num símbolo de crença e de quimera:
Simples imagem viva, bem sincera,
Dum mundo de ilusões e de ternura!

Meus santos pucarinhos, milagrosos,
Cumprindo as gratas obras do Senhor,
Dando de beber aos lábios sequiosos:

Minha boca vos beija com fervor,
Como se, noutros tempos luminosos,
Beijasse ainda o meu primeiro amor!

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Miragem

Daqui, da minha Torre de Menagem,
Vejo florir, ao longo da planície,
«Montes» caiados vindo à superfície,
Como beijos de luz sobre a paisagem.

E, longe, muito longe, que miragem!
Um traço azul, Senhor, como se eu visse
O mar imenso, além, que nos abrisse
A novos horizontes a passagem!

Quem me dera partir, pelo mar fora!
Sonhar de novo, à luz de cada dia,
As ilusões que em mim senti outrora!

Quanta imaginação! Quanta amargura!
Por esse mar de louca fantasia,
Meu pobre coração vai à procura…

Estremoz (na Torre de Menagem)
Primavera de 1939

Flor sem nome

Eis que, na estiagem bárbara, surgiu,
Num canto de jardim abandonado,
Espécie inverosímil de relvado,
Como a graça dum sonho que floriu!

Rasteirinho, tão leve, coloriu
Dum amarelo vivo acentuado
Esse tapete simples, matizado,
Que um não sei quê de vida resumiu!

Foi bem do Céu esta pequena oferta!
«Flor sem nome», que um sopro desvanece…
Mas que perfuma a casa mais deserta!

Quantas vezes, em nós, isso acontece!
Um sonho… uma ilusão que assim desperta…
No coração que, morto, nos parece…

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Alma alentejana

Agosto em brasa… O céu, de zinco ardente,
Palpita em «calma», desde a madrugada,
E a terra inteira seca, revoltada;
Todo o arvoredo sangra, impaciente!

Os «restolhos» crepitam na «queimada»
Deste sopro de lava incandescente,
Que se reflecte em fogo, no poente,
Em mágica visão alucinada!

Nem mesmo quando chega a noite escura,
Um bálsamo suave de frescura
Envolve a terra em místico sudário!

Mas, por que fantasia de ternura
Minha alma alentejana só procura
Este louco e fantástico cenário?

Conselho

No meu passado há sol: há claridade,
Que à sombra do futuro resplandece,
Quanto mais o caminho me escurece,
No presente, que é feito de saudade.

Encontro ainda tanta suavidade
Ao relembrar! Ás vezes, me acontece
Sentir o coração que me envelhece,
A reflorir de novo em mocidade!

Sempre é doce o passado recordar:
- Aprende a envelhecer tranquilamente,
Colhe da vida o que ela te quer dar…

Envelhecer assim não custa nada:
É como quem procura, no poente,
A estrela que brilhou na madrugada…

terça-feira, 18 de maio de 2010

Primavera

Quero-te bem, ó doce primavera,
Que vens encher de cor a minha vida:
Minha irmã – alegria tão querida,
Meu ideal de sonho, de quimera!

Em mim, sentir-te sempre, quem me dera;
Adoro ver a terra assim florida,
Por esse teu aroma entontecida,
Toda vida, glicínias, folhas de hera.

Eu vou colher, além, nos olivais,
Madressilvas, roselas, lírios bravos,
A anémona, um lilás de tons ideais…

A primavera passa…mais um dia…
E, sobre a mesa, vão murchando os cravos…
Como o Tempo esfolhou minha alegria!

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Além-Tejo

Ao grande elegíaco de Além-Tejo:
Mário Beirão


«Ó planícies extáticas», dormentes,
Vão beijar-vos meus olhos desbotados,
Cor da azinheira triste dos montados,
Como pegos, à noite, reluzentes!

E, assim, ao ver-vos, quedam-se frementes:
Terras sem fim, restolhos abrasados,
Infindos horizontes, descampados,
Miragens que me trazem os poentes…

Nessa hora de inertes desalentos,
Fico-me a olhar, profundamente calma,
As vestidões… um mar de pensamentos!

Barros sangrando… cal de incertos «montes»…
Oh Além-Tejo, oh alma da minha alma,
Bate o meu coração nos horizontes!

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Flor de Esteva

Venho encontrá-la já quase a morrer,
A minha pobre «esteva do montado»,
Que, antes, eu vira alegre, florescer,
Junto à «linda» riscada pelo arado!

Levei ao Casalinho de Bel Vêr
A rainha do grande descampado;
Mas ela não quis mais ali viver,
Sem «maios» e «roselas» ao seu lado.

Falta-lhe o ardor do sol alentejano,
Aquela sombra amiga dos sobreiros…
Já não teve as «geadas» deste ano.

E morre de saudade e nostalgia,
Sem ter o barro e a cal por companheiros,
Queimada pelo ar da maresia…


Casal de Bel Ver – Ericeira *
Outono de 1935

*casa dos seus Avós Maria Catarina de Sousa Coutinho e Alberto Osório de Castro

quarta-feira, 12 de maio de 2010

À MEMÓRIA DE MEU AVÔ, O POETA ALBERTO OSÓRIO DE CASTRO

Ali fiquei ao pé do meu Avô,
Até que Ele partiu
Para não mais voltar…
Mas, o seu espírito ficou;
E, na saudade eterna, refloriu
Para me deslumbrar…
O melhor que Ele tinha me legou:
A sua fantasia
De ardente crepitar;
Este anseio em que vivo a delirar,
De voo em voo;
Esta melancolia…

terça-feira, 11 de maio de 2010

Inscrição no livro FLOR DE ESTEVA

Desse bruxo em delírio - transportado
Evocador do Oriente e do seu flóreo
Esplandecer - do grande Alberto Osório
Herdaste a febre em que ele ardeu, extasiado:

Ergues a voz...e o raso descampado
De Além-Tejo a perder-se, merencório,
Como que aspira ao Céu; cresce, incorpóreo,
Em teu canto, nos ecos espraiado!

Oh, que sabor de terra em tuas rimas!
Falas de estevas, urzes, folhas secas:
No verso, em que as exaltas, te sublimas!

Cantas...e um Anjo, ao largo, se suspende:
Pasma, a escutar...e a noite das charnecas,
Mais fúnebre, masis cálida, rescende...

MÁRIO BEIRÃO